Das escadas do primeiro andar



Eis o ponto esperado. Uma porta fechada, inviolável que grosseiramente fria parece murmurar: não me toque-não desvende minha aspereza. Talvez ironize, ou não. Talvez queira sentir mesmo minhas mãos quentes em sua maçaneta, ou não. Talvez queira que eu vá embora ou não. Talvez queira sentir meu corpo passando, febril, desejoso, ou não. Talvez, ou não, ou. Não sei. Porém está fatidicamente oclusa, enquanto eu a desejasse abrir com toda minha alma, como desejo ele que está por atrás da porta. Fechada, e é uma lei. Não sei se ouso derrubá-la com os pés, e possuí-lo enquanto ele deve estar com aquelas meias brancas-de-algodão, numa poltrona com seu velho whisky nas mãos e algumas palavras sem nexo que eu não tentarei descobrir quando enfim senti-lo quente em minha nuca. E a porta? Quantos devaneios enquanto há uma porta negra e espessa na minha frente. Não, não há campanhia. Há só meus dedos loucos para abrir a fechadura sem que ele me perceba curiosa-infantil. Esse silêncio emadeirado é indiferente, e fere. Um transe de uma dimensão a outra, mas desconhecida ainda, universos opostos que tão perto não se tocam. Tento romper algumas gentilezas que seriam involuntárias caso ele abrisse a porta e me encontrasse ali, nunca precisamos de cordialidades, nos conhecemos mais do que a outros, assim somos estranhos para nós mesmos. E começo a pensar: “se-abrirá-sozinha, nem eu, nem ele precisaremos abri-la, será um quase destino, um encontrará o olhar assim sem graça do outro; ele me chamará pra entrar, eu assim sem jeito tirarei os sapatos como uma estranha, e direi que estava de passagem, ele oferecerá um chá porque sabe que eu gosto, perceberei que ele lembrou, e entrarei, e ficaremos calados, até as mãos incontidas de um decidir tocar o corpo úmido do outro, e enfim, não haverá mais a porta, mas grades de olhos que prendem os olhos que se comem encima do outro.” Mas quase sempre depois de pensar, a realidade dá um soco no estômago, e percebo que nada se moveu, nem lá dentro, nem aqui fora; alguém deverá erguer uma mão, e bater, e socar, e tentar derrubar, ou gritar. Vai badalar onze da noite, é justo o outro dia que chega, e eu queria que ele abrisse para por o lixo, que seja, se eu me entregar à porta não será uma coincidência eu estar ali, sentirei vergonha, enfim serei estranha. E se eu cair? Cair e bater com a cabeça na porta, na grande e absurda porta, ele vai largar a poltrona, o whisky, vai tentar ver o que aconteceu? será um acaso, e ele me chamará pra por um gelo na testa, sentirei seu hálito de trigo destilado, vou beijá-lo assim sem querer, e pedir que me leve pro quarto, dizer que perdi as chaves, e faremos amor, até quase amanhecer, e eu direi que jamais quero as chaves de volta, e ele vai rosnar no meu ouvido: fique. E eu não vou partir de novo. Mas eu estou sentada na beira da porta, com as chaves nas mãos, ouvindo o barulho que o gargalho da bebida faz no copo de vidro que ele bebe, sem coragem de dizer seu nome, eu nem me lembro que nome ele tem, nem do seu rosto de menino-homem, faz tanto tempo, e a porta ainda silenciosa nos separa, ironiza para minha covardia seu número grande e estampado: 1712, uma combinação de uma data familiar que eu queria não lembrar naquela hora. Vou me embora, quem sabe eu não o encontro em um desses degraus do primeiro andar quando eu for comprar pão e ele cigarros. Ou eu esbarre no seu peito negro nervudo enquanto com um livro na mão finjo não o ver. Ou não.
Essas incertezas são a expressão dos labirintos que revelam uma natureza quase sempre indecifrável, algumas vezes fere, mas quase nunca curam. Com certeza as respostas não estão nos degraus da escada, nas portas, no primeiro andar, exceto nos olhos que não se cruzaram esta noite.
 Evelyn Colaço



''Eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.''
[ Caio Fernando Loureiro de Abreu ]



Comentários

  1. Lindo, profundo e verdadeiro! E quantas coisas deixamos por dizer?! Parabéns!!

    Beijocas!!
    ;)

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  2. Profundo Eve, saudades de passar por aqui, fase de mudança é sempre difícil...tuas palavras continuam incríveis, me fazendo criar lágrimas nos olhos.

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  3. respingando Caio F. Abreu. perfeito, e completamente novo, novas palavras, novos enredos, nova Evelyn.
    não para, por favor.

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  4. seguindo seu blog
    me segui tbm adorei aq
    http://intensamenteamor.blogspot.com/ bjuss

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  5. Minha xará predileta.
    Parei de escrever, confesso; e confesso também sentir saudade e aquela nostalgia estranha de pessoas que não se falam quando vi uma atualização no painel do "Outonos que guardei".
    Acho que estás mais completa que nunca, mais apaixonada que nunca. E escrevendo de um jeito mais lindo que nunca.

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